terça-feira, 29 de novembro de 2011

Tecnologia da informação e sociedade


Sob ponto de vista do comportamento ético, direitos autorais devem ser respeitados, plágio não praticado, informações privadas dos cidadãos não furtadas, a liberdade de expressão defendida, a censura inexistir, a corrupção na esfera pública controlada, e daí afora.


Tela de autoria de C. Castro que bem poderia se intitular
 "A procura do caminho"

Entretanto, essa não é, em absoluto, a realidade do dia a dia. Apesar do aparato legal e repressivo com vistas a coibir tais fenômenos, eles se manisfestam em quantidade crescente na medida em que um número maior de pessoas tem acesso aos meios disponíveis para a sua prática, dentre eles a posse de um computador conectado à internet.

As proposições sobre as causas de tais comportamentos são complexas, variando desde a discussão epistemológica sobre determinados conceitos, como, por exemplo, a propriedade privada do conhecimento, ou direitos autorais, até posicionamentos que centram na personalidade individual desviante a razão de tais práticas.

Os argumentos aqui apresentados seguirão em direção alternativa aos acima expostos e partirão dos seguintes pressupostos:

1) concepções morais sobre comportamentos corretos, entendidos como socialmente aceitos e incentivados, e incorretos, ou socialmente reprováveis, são criações humanas dependentes de contextos determinados;

2) por serem criações sociais e que, portanto, independem dos fenômenos puramente naturais, as noções de certo e errado, correto e incorreto, determinam, em larga escala, os comportamentos individuais. Assim, comportamentos julgados ilegais, quanto praticados por elevado número de participantes de uma dada sociedade, devem ter suas causas primeiras buscadas no modelo de organização social em que tais sujeitos se inserem. Em certo sentido, este pressuposto remete à concepção Weberiana de organização social (WEBER, Max. Economia e Sociedade. Brasília: UNB, 1994, ed 3ª, v 1);

3) dentre as concepções modernas presentes na organização social, a mais importante parece ser a noção de cidadania, seja ela aceita de forma crítica ou presente de modo não percebido na configuração psicológica dos atores sociais.

E por que a configuração de determinado modelo de cidadania é determinante do comportamento ético em ambientes públicos de participação em massa, como a web? Pelo fato de que, como se demonstrará a seguir, os sujeitos se comportam como atores sociais guiados por configurações psicológicas correlatas de ambientes sociais historicamente determinados (ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar, 1994).

No contexto brasileiro, que será o “locus” por excelência dos argumentos aqui desenvolvidos, a concepção de cidadania parece seguir uma linha evolutiva uniforme deste a época imperial até o presente (MENDES, O.J.R. Concepção de cidadania. São Paulo: Dissertação de Mestrado FDUSP, 2010), fato que permite considerações importantes sobre o padrão de comportamento do brasileiro típico.

Angus Stewart (Two Conceptions of Citizenship) defende duas concepções principais de cidadania frente às várias noções associadas ao termo, muitas delas conflitantes. A primeira dessas concepções, a noção formal e legal de cidadania, é a que, por fatores históricos e sociais, serve como protótipo teórico para análise da concepção predominante no Brasil.

Historicamente, a noção formal e legal de cidadania encontra sua origem na Revolução Francesa de 1788 e opõe a noção de cidadão ao de estrangeiro, estabelece a igualdade civil derivada de direitos em relação a e obrigações para com o Estado, além da hegemonia do conceito de soberania nacional, e é, intrinsecamente, uma concepção individualista, forjada na relação sujeito-estado e não na relação sujeito-sujeito que resulte na noção de Estado.

Formal e abstrata, a noção de cidadania é subordinada a noção central de Estado, definido pelo território sobre o qual este exibe jurisdição legal baseado na força, e pelo conjunto de indivíduos sobre os quais vincula suas determinações. Esses conceitos se tornam claros, na história brasileira, quando analisamos, no período Imperial, um dos fundamentos que permitiu a estabilidade política e administrativa enunciados por Paulino José de Souza, Visconde do Uruguai: a responsabilidade central do estado em educar a população sobre o significado de termos como cidadania e bem comum, orientando os sujeitos sobre seus reais interesses e tutelando-os sobre as escolhas adequadas para o bem estar geral (CARVALHO, José Murilo de. A utopia de Oliveira Viana in Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, p. 82-89, 1991).

Deste modo, sob uma perspectiva centrada no Estado, a cidadania é concebida como a atribuição legal de um status definido para cada membro da comunidade sob jurisdição legal desse Estado e que compreende um rol de direitos e obrigações. O ponto fraco dessa concepção é que ela não concebe o sujeito como passível de emancipação e autonomia. Pelo contrário, em contrapartida a determinadas obrigações, como, por exemplo, o exercício de uma atividade econômica, o voto e a prestação de serviço militar, o Estado assume extenso elenco de obrigações, vistos como direitos sob a ótica do cidadão, e que passam pela disponibilidade de oportunidades de educação, saúde e bem-estar social (Art. 6º da Constituição de 1988). A noção tradicional de cidadania sob ótica de tripla e indissociável atuação (política, civil e social) transmuta-se em direitos sociais, com o cidadão a reclamar, do Estado, o atendimento de suas necessidades vitais. A consequência é a constituição de sujeitos a-políticos e a-morais (STEWART, op cit), já que essas duas instâncias de atuação social são delegadas aos políticos profissionais e aos programas de governo democraticamente eleitos. Ora, em ambientes em que sujeitos não se constituem como atores aptos a valorar, influenciar e modificar o ambiente social em que vivem, mas se concebem como destinatários privilegiados de bens gerados indistintamente pela sociedade, esperar comportamentos éticos em ambientes coletivos em que recursos estão livremente disponíveis, como o ambiente web, é, antes de tudo, confiar em noções altamente abstratas e subjetivas, como bondade individual (FLORIDI, Luciano. Information Technologies and the Tragedy of the Good Will).

Esse é um problema que, em formato amplo e geral, foi detectado na Reforma Gerencial do Estado Brasileiro de 1995 mas que, posteriormente, foi mitigado no governo Lula. Um de seus objetivos era o de transformar o cidadão de ator social passivo em ator social ativo, capaz de identificar as deficiências econômicas, sociais e políticas em seu ambiente social e reunir esforços no sentido de saná-las. Infelizmente, esse projeto político foi praticamente abandonado em detrimentos de políticas de cunho assistencialista, cuja mérito não cabe aqui analisar mas que, em linhas gerais, apenas se realinham aos ideais do Período Saquarema propostos pelo Visconde de Uruguai. São discursos onde se destaca a preponderância da necessidade de condução externa (heteronomia) das ações de cidadãos incapazes de forjarem a própria autonomia na ação social. O conhecimento da verdade configura-se como privilégio dos governantes, cabendo a estes, sob a orientação centralizada no Estado, o processo de educar e conduzir adequadamente os demais membros da nação. Assim, direitos autorais desrespeitados, plágios em ambientes considerados sérios e competentes ou desrespeito à liberdade de expressão , embora legalmente impedidos, se apresentam como práticas corriqueiras e banais na sociedade brasileira em função da frouxa formação moral e cívica de seus membros e decorrentes de uma concepção anacrônica de cidadania. De acordo com o caso, bens que englobam direitos legalmente definidos são vistos como recursos de livre disposição ao cidadão e que reside em sua discricionariedade a oportunidade de apropriação particular sem a necessidade de contrapartidas específicas, como é o caso dos direitos autorais. Em outras circunstâncias, como a da liberdade de expressão, o cidadão parece não valorá-la como elemento indispensável para o exercício da autonomia de ação social e do adequado comportamento ético.

Obviamente, não se está aqui a defender que uma concepção de cidadania fundada no posicionamento crítico e na autonomia de ação resolva, por si só, problemas éticos e de ilegalidade de comportamentos. Mas representa um dos pilares, ou condição necessária, para constituição de cidadãos morais e socialmente responsáveis.

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